Desprezo - Bernardo Soares


O que parece haver de desprezo entre homem e homem, de indiferente que permite que se mate gente sem que se sinta que se mata, como entre os assassinos, ou sem que se pense que se está matando, como entre os soldados, é que ninguém presta a devida atenção ao fato, parece que abstruso, de que os outros são almas também.
(...)
Quando ontem me disseram que o empregado da tabacaria se tinha suicidado, tive uma impressão de mentira. Coitado, também existia! Tínhamos esquecido isso, nós todos dos[,] nós todos que o conhecíamos do mesmo modo que todos que o não conheceram. Amanhã esquecê-lo-emos melhor.
Mas que havia alma, havia, para que se matasse.

Livro do Desassossego
Bernardo Soares,
Heterônimo de Fernando Pessoa