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Fumo - Florbela Espanca


Fumo
(Florbela Espanca)

Longe de ti são ermos os caminhos, 
Longe de ti não há luar nem rosas; 
Longe de ti há noites silenciosas, 
Há dias sem calor, beirais sem ninhos! 

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos 
Perdidos pelas noites invernosas... 
Abertos, sonham mãos cariciosas, 
Tuas mãos doces plenas de carinhos! 

Os dias são Outonos: choram... choram... 
Há crisântemos roxos que descoram... 
Há murmúrios dolentes de segredos... 

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços! 
E ele é, ó meu amor pelos espaços, 
Fumo leve que foge entre os meus dedos... 

Triste destino - Florbela Espanca


Triste destino!
(Florbela Espanca)

Quando às vezes o mar soluça tristemente 
A praia abre-lhe os braços e deixa-o a gemer; 
Embala-o com amor, de leve, docemente, 
E canta-lhe cantigas p’ra adormecer! 

Quando o Outono leva a folha rendilhada, 
O vestido real da branda Primavera, 
O rio abre-lhe os braços e leva amortalhada 
A pequenina folha, essa ideal quimera! 

O sol, agonizante e quase moribundo, 
Estende os braços nus, alegre, para o mundo 
Que o faz amortalhar em púrpura de lenda! 

O sol, a folha, o mar tudo é feliz! Mas eu 
Busco a mortalha minha até no alto céu! 
E nem a cruz p’ra mim tem braços que m’estenda!

Angústia - Florbela Espanca


Angústia
(Florbela Espanca)

Tortura do pensar! Triste lamento! 
Quem nos dera calar a tua voz! 
Quem nos dera cá dentro, muito a sós, 
Estrangular a hidra num momento! 

E não se quer pensar! ... e o pensamento 
Sempre a morder-nos bem, dentro de nós ... 
Querer apagar no céu – ó sonho atroz! – 
O brilho duma estrela, com o vento! ... 

E não se apaga, não ... nada se apaga! 
Vem sempre rastejando como a vaga ... 
Vem sempre perguntando: “O que te resta? ...” 

Ah! não ser mais que o vago, o infinito! 
Ser pedaço de gelo, ser granito, 
Ser rugido de tigre na floresta! 

Noite de saudade - Florbela Espanca


Noite de saudade
(Florbela Espanca)

A Noite vem poisando devagar 
Sobre a Terra, que inunda de amargura ... 
E nem sequer a bênção do luar 
A quis tornar divinamente pura ... 

Ninguém vem atrás dela a acompanhar 
A sua dor que é cheia de tortura ... 
E eu oiço a Noite imensa soluçar! 
E eu oiço soluçar a Noite escura! 

Por que és assim tão escura, assim tão triste?! 
É que, talvez, ó Noite, em ti existe 
Uma Saudade igual à que eu contenho! 

Saudade que eu nem sei donde me vem ... 
Talvez de ti, ó Noite! ... Ou de ninguém! ... 
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!! 

Princesa desalento - Florbela Espanca


Princesa desalento
(Florbela Espanca)

Minh'alma é a Princesa Desalento, 
Como um Poeta lhe chamou, um dia. 
É revoltada, trágica, sombria, 
Como galopes infernais de vento! 

É frágil como o sonho dum momento, 
Soturna como preces de agonia, 
Vive do riso duma boca fria! 
Minh'alma é a Princesa Desalento... 

Altas horas da noite ela vagueia... 
E ao luar suavíssimo, que anseia, 
Põe-se a falar de tanta coisa morta! 

O luar ouve a minh'alma, ajoelhado, 
E vai traçar, fantástico e gelado, 
A sombra duma cruz à tua porta... 

A minha piedade - Florbela Espanca


A minha piedade
(Florbela Espanca)

A Bourbon e Meneses 

Tenho pena de tudo quanto lida 
Neste mundo, de tudo quanto sente, 
Daquele a quem mentiram, de quem mente, 
Dos que andam pés descalços pela vida, 

Da rocha altiva, sobre o monte erguida, 
Olhando os céus ignotos frente a frente, 
Dos que não são iguais à outra gente, 
E dos que se ensangüentam na subida! 

Tenho pena de mim... pena de ti... 
De não beijar o riso duma estrela... 
Pena dessa má hora em que nasci... 

De não ter asas para ir ver o céu... 
De não ser Esta... a Outra... e mais Aquela... 
De ter vivido e não ter sido Eu... 

Não ser - Florbela Espanca


Não ser
(Florbela Espanca)

Quem me dera voltar à inocência 
Das coisas brutas, sãs, inanimadas, 
Despir o vão orgulho, a incoerência: 
- Mantos rotos de estátuas mutiladas! 

Ah! arrancar às carnes laceradas 
Seu mísero segredo de consciência! 
Ah! poder ser apenas florescência 
De astros em puras noites deslumbradas! 

Ser nostálgico choupo ao entardecer, 
De ramos graves, plácidos, absortos 
Na mágica tarefa de viver! 

Ser haste, seiva, ramaria inquieta, 
Erguer ao sol o coração dos mortos 
Na urna de oiro duma flor aberta!... 

Mais triste - Florbela Espanca


Mais triste
(Florbela Espanca)

É triste, diz a gente, a vastidão 
Do mar imenso! E aquela voz fatal 
Com que ele fala, agita o nosso mal! 
E a Noite é triste como a Extrema-Unção! 

É triste e dilacera o coração 
Um poente do nosso Portugal! 
E não vêem que eu sou ... eu ... afinal, 
A coisa mais magoada das que são?! ... 

Poentes de agonia trago-os eu 
Dentro de mim e tudo quanto é meu 
É um triste poente de amargura! 

E a vastidão do Mar, toda essa água 
Trago-a dentro de mim num mar de Mágoa! 
E a noite sou eu própria! A Noite escura!! 

A um moribundo - Florbela Espanca


A um moribundo
(Florbela Espanca)

Não tenhas medo, não! Tranquilamente, 
Como adormece a noite pelo Outono, 
Fecha os teus olhos, simples, docemente, 
Como, à tarde, uma pomba que tem sono... 

A cabeça reclina levemente 
E os braços deixa-os ir ao abandono, 
Como tombam, arfando, ao sol poente, 
As asas de uma pomba que tem sono... 

O que há depois? Depois?... O azul dos céus? 
Um outro mundo? O eterno nada? Deus? 
Um abismo? Um castigo? Uma guarida? 

Que importa? Que te importa, ó moribundo? 
- Seja o que for, será melhor que o mundo! 
Tudo será melhor do que esta vida!... 

Impossível - Florbela Espanca


Impossível
(Florbela Espanca)

Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste: 
“Parece Sexta-Feira de Paixão. 
Sempre a cismar, cismar de olhos no chão, 
Sempre a pensar na dor que não existe ... 

O que é que tem?! Tão nova e sempre triste! 
Faça por estar contente! Pois então?! ...” 
Quando se sofre, o que se diz é vão ... 
Meu coração, tudo, calado, ouviste ... 

Os meus males ninguém mos adivinha ... 
A minha Dor não fala, anda sozinha ... 
Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera! ... 

Os males de Anto toda a gente os sabe! 
Os meus ... ninguém ... A minha Dor não cabe 
Nos cem milhões de versos que eu fizera! ...    

Estou cansada - Florbela Espanca


Estou cansada, cada vez mais incompreendida e insatisfeita comigo, com a vida e com os outros. Diz-me, porque não nasci igual aos outros, sem dúvidas, sem desejos de impossível? E é isto que me traz sempre desvairada, incompatível com a vida que toda a gente vive...

Florbela Espanca
Correspondência (1930)

Mendiga - Florbela Espanca


Mendiga
(Florbela Espanca)

Na vida nada tenho e nada sou; 
Eu ando a mendigar pelas estradas... 
No silêncio das noites estreladas 
Caminho, sem saber para onde vou! 

Tinha o manto do sol... quem mo roubou?! 
Quem pisou minhas rosas desfolhadas?! 
Quem foi que sobre as ondas revoltadas 
A minha taça de oiro espedaçou?! 

Agora vou andando e mendigando, 
Sem que um olhar dos mundos infinitos 
Veja passar o verme, rastejando... 

Ah, quem me dera ser como os chacais 
Uivando os brados, rouquejando os gritos 
Na solidão dos ermos matagais!... 

Lágrimas ocultas - Florbela Espanca


Lágrimas ocultas 
(Florbela Espanca)

Se me ponho a cismar em outras eras
Em que rí e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi outras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!

Hora que passa - Florbela Espanca


Hora que passa
(Florbela Espanca)

Vejo-me triste, abandonada e só 
Bem como um cão sem dono e que o procura 
Mais pobre e desprezada do que Job 
A caminhar na via da amargura! 

Judeu Errante que a ninguém faz dó! 
Minh'alma triste, dolorida, escura, 
Minh'alma sem amor é cinza, é pó, 
Vaga roubada ao Mar da Desventura! 

Que tragédia tão funda no meu peito!... 
Quanta ilusão morrendo que esvoaça! 
Quanto sonho a nascer e já desfeito! 

Deus! Como é triste a hora quando morre... 
O instante que foge, voa, e passa... 
Fiozinho d'água triste... a vida corre... 

Noite trágica - Florbela Espanca


Noite trágica
(Florbela Espanca)

O pavor e a angústia andam dançando... 
Um sino grita endechas de poentes... 
Na meia-noite d´hoje, soluçando, 
Que presságios sinistros e dolentes!... 

Tenho medo da noite!... Padre nosso 
Que estais no céu... O que minh´alma teme! 
Tenho medo da noite!... Que alvoroço 
Anda nesta alma enquanto o sino geme! 

Jesus! Jesus, que noite imensa e triste! 
A quanta dor a nossa dor resiste 
Em noite assim que a própria dor parece... 

Ó noite imensa, ó noite do Calvário, 
Leva contigo envolto no sudário 
Da tua dor a dor que me não ´squece!

Que impota?... - Florbela Espanca


Que importa?...
(Florbela Espanca)

Eu era a desdenhosa, a indif'rente. 
Nunca sentira em mim o coração 
Bater em violências de paixão 
Como bate no peito à outra gente. 

Agora, olhas-me tu altivamente, 
Sem sombra de Desejo ou de emoção, 
Enquanto a asa loira da ilusão 
Dentro em mim se desdobra a um sol nascente. 

Minh'alma, a pedra, transformou-se em fonte; 
Como nascida em carinhoso monte 
Toda ela é riso, e é frescura, e graça! 

Nela refresca a boca um só instante... 
Que importa?... Se o cansado viandante 
Bebe em todas as fontes... quando passa?... 

A vida - Florbela Espanca


A vida 
(Florbela Espanca)

É vão o amor, o ódio, ou o desdém;
Inútil o desejo e o sentimento...
Lançar um grande amor aos pés de alguém
O mesmo é que lançar flores ao vento!

Todos somos no mundo" Pedro Sem",
Uma alegria é feita dum tormento,
Um riso é sempre o eco dum lamento,
Sabe-se lá um beijo de onde vem!

A mais nobre ilusão morre... desfaz-se...
Uma saudade morta em nós renasce
Que no mesmo momento é já perdida...

Amar-te a vida inteira eu não podia.
A gente esquece sempre o bem de um dia.
Que queres, meu Amor, se é isto a vida!

Interrogação - Florbela Espanca


Interrogação
A Guido Batelli 
(Florbela Espanca)

Neste tormento inútil, neste empenho 
De tornar em silêncio o que em mim canta, 
Sobem-me roucos brados à garganta 
Num clamor de loucura que contenho. 

Ó alma de charneca sacrossanta, 
Irmã da alma rútila que eu tenho, 
Dize pra onde vou, donde é que venho 
Nesta dor que me exalta e me alevanta! 

Visões de mundos novos, de infinitos, 
Cadências de soluços e de gritos, 
Fogueira a esbrasear que me consome! 

Dize que mão é esta que me arrasta? 
Nódoa de sangue que palpita e alastra... 
Dize de que é que eu tenho sede e fome?! 

Loucura - Florbela Espanca


Loucura
(Florbela Espanca)

Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada
Pavorosa! Não sei onde era dantes.
Meu solar, meus palácios, meus mirantes!
Não sei de nada, Deus, não sei de nada!...

Passa em tropel febril a cavalgada
Das paixões e loucuras triunfantes!
Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes!
Não tenho nada, Deus, não tenho nada!...

Pesadelos de insônia, ébrios de anseio!
Loucura de esboçar-se, a enegrecer
Cada vez mais as trevas do meu seio!

Ó pavoroso mal de ser sozinha!
Ó pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro de mim! 

Sem remédio - Florbela Espanca


Sem remédio
(Florbela Espanca)

Aqueles que me têm muito amor 
Não sabem o que sinto e o que sou ... 
Não sabem que passou, um dia, a Dor 
À minha porta e, nesse dia, entrou. 

E é desde então que eu sinto este pavor, 
Este frio que anda em mim, e que gelou 
O que de bom me deu Nosso Senhor! 
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!! 

Sinto os passos da Dor, essa cadência 
Que é já tortura infinda, que é demência! 
Que é já vontade doida de gritar! 

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio, 
A mesma angústia funda, sem remédio, 
Andando atrás de mim, sem me largar!