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Esta velha angústia

De Álvaro de Campos, heterômino de Fernando Pessoa, 16.6.1934

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.

Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos 
Estou assim...

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!


Imagem: https://www.saatchiart.com/art/Drawing-crazy/671301/3998897/view

O sono - Álvaro de Campos


O sono 
(Álvaro de Campos,
Heterônimo de Fernando Pessoa)

O sono que desce sobre mim, 
O sono mental que desce fisicamente sobre mim, 
O sono universal que desce individualmente sobre mim — 
Esse sono 
Parecerá aos outros o sono de dormir, 
O sono da vontade de dormir, 
O sono de ser sono. 

Mas é mais, mais de dentro, mais de cima: 
É o sono da soma de todas as desilusões, 
É o sono da síntese de todas as desesperanças, 
É o sono de haver mundo comigo lá dentro 
Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso. 

O sono que desce sobre mim 
É contudo como todos os sonos. 
O cansaço tem ao menos brandura, 
O abatimento tem ao menos sossego, 
A rendição é ao menos o fim do esforço, 
O fim é ao menos o já não haver que esperar. 

Há um som de abrir uma janela, 
Viro indiferente a cabeça para a esquerda 
Por sobre o ombro que a sente, 
Olho pela janela entreaberta: 
A rapariga do segundo andar de defronte 
Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém. 
De quem?, 
Pergunta a minha indiferença. 
E tudo isso é sono. 

Meu Deus, tanto sono!... 

Deus é um conceito económico - Álvaro de Campos


Deus é um conceito económico. À sua sombra fazem a sua burocracia metafísica os padres das religiões todas.

Álvaro de Campos,
Heterônimo de Fernando Pessoa

Sim, sou eu, eu mesmo - Álvaro de Campos


Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobresselente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconsequente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro eléctrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos,
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio!...

Álvaro de Campos,
Heterônimo de Fernando Pessoa

Ora até que enfim - Álvaro de Campos


Ora até que enfim..., perfeitamente... 
Cá está ela! 
Tenho a loucura exatamente na cabeça. 
Meu coração estourou como uma bomba de pataco, 
E a minha cabeça teve o sobressalto pela espinha acima... 

Graças a Deus que estou doido! 
Que tudo quanto dei me voltou em lixo, 
E, como cuspo atirado ao vento, 
Me dispersou pela cara livre! 
Que tudo quanto fui se me atou aos pés, 
Como a sarapilheira para embrulhar coisa nenhuma! 
Que tudo quanto pensei me faz cócegas na garganta 
E me quer fazer vomitar sem eu ter comido nada! 

Graças a Deus, porque, como na bebedeira, 
Isto é uma solução. 
Arre, encontrei uma solução, e foi preciso o estômago! 
Encontrei uma verdade, senti-a com os intestinos! 

Poesia transcendental, já a fiz também! 
Grandes raptos líricos, também já por cá passaram! 
A organização de poemas relativos à vastidão de cada assunto resolvido em vários — 
Também não é novidade. 
Tenho vontade de vomitar, e de me vomitar a mim... 
Tenho uma náusea que, se pudesse comer o universo para o despejar na pia, comia-o. 
Com esforço, mas era para bom fim. 
Ao menos era para um fim. 
E assim como sou não tenho nem fim nem vida... 

Álvaro de Campos,
Heterônimo de Fernando Pessoa

Pecado original - Álvaro de Campos


Pecado original
(Álvaro de Campos,
Heterônimo de Fernando Pessoa)

Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido? 
Será essa, se alguém a escrever, 
A verdadeira história da humanidade. 

O que há é só o mundo verdadeiro, não é nós, só o mundo; 
O que não há somos nós, e a verdade está aí. 

Sou quem falhei ser. 
Somos todos quem nos supusemos. 
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca. 

Que é daquela nossa verdade — o sonho à janela da infância? 
Que é daquela nossa certeza — o propósito a mesa de depois? 

Medito, a cabeça curvada contra as mãos sobrepostas 
Sobre o parapeito alto da janela de sacada, 
Sentado de lado numa cadeira, depois de jantar. 

Que é da minha realidade, que só tenho a vida? 
Que é de mim, que sou só quem existo? 

Quantos Césares fui! 

Na alma, e com alguma verdade; 
Na imaginação, e com alguma justiça; 
Na inteligência, e com alguma razão — 
Meu Deus! meu Deus! meu Deus! 
Quantos Césares fui! 
Quantos Césares fui! 
Quantos Césares fui! 

A música - Álvaro de Campos


A música, sim a música...
Piano banal do outro andar.
A música em todo o caso, a música..
Aquilo que vem buscar o choro imanenre
De toda a criatura humana
Aquilo que vem torturar a calma
Com o desejo duma calma melhor...
A música... Um piano lá em cima
Com alguém que o toca mal.
Mas é música...

Ah quantas infâncias tive!
Quantas boas mágoas?,
A música...
Quantas mais boas mágoas!
Sempre a música...
O pobre piano tocado por quem não sabe tocar.
Mas apesar de tudo é música.

Ah, lá conseguiu uma música seguida —
Uma melodia racional —
Racional, meu Deus!
Como se alguma coisa fosse racional!
Que novas paisagens de um piano mal tocado?
A música!... A música...!

Álvaro de Campos,
Heterônimo de Fernando Pessoa

Cruz na porta - Álvaro de Campos


Cruz na porta da tabacaria! 
Quem morreu? O próprio Alves? Dou 
Ao diabo o bem-estar que trazia. 
Desde ontem a cidade mudou. 

Quem era? Ora, era quem eu via. 
Todos os dias o via. Estou 
Agora sem essa monotonia. 
Desde ontem a cidade mudou. 

Ele era o dono da tabacaria. 
Um ponto de referência de quem sou 
Eu passava ali de noite e de dia. 
Desde ontem a cidade mudou. 

Meu coração tem pouca alegria, 
E isto diz que é morte aquilo onde estou. 
Horror fechado da tabacaria! 
Desde ontem a cidade mudou. 

Mas ao menos a ele alguém o via, 
Ele era fixo, eu, o que vou, 
Se morrer, não falto, e ninguém diria. 
Desde ontem a cidade mudou. 

Álvaro de Campos,
Heterônimo de Fernando Pessoa

Na véspera de não partir nunca - Álvaro de Campos


Na véspera de não partir nunca 
Ao menos não há que arrumar malas 
Nem que fazer planos em papel, 
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos, 
Para o partir ainda livre do dia seguinte. 
Não há que fazer nada 
Na véspera de não partir nunca. 
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego! 
Grande tranquilidade a que nem sabe encolher ombros 
Por isto tudo, ter pensado o tudo 
É o ter chegado deliberadamente a nada. 
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre, 
Como uma oportunidade virada do avesso. 
Há quantas vezes vivo 
A vida vegetativa do pensamento! 
Todos os dias sine linea 
Sossego, sim, sossego... 
Grande tranqüilidade... 
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas! 
Que prazer olhar para as malas fítando como para nada! 
Dormita, alma, dormita! 
Aproveita, dormita! 
Dormita! 
É pouco o tempo que tens! Dormita! 
É a véspera de não partir nunca! 

Álvaro de Campos,
Heterônimo de Fernando Pessoa

Todas as cartas de amor são ridículas - Álvaro de Campos


Todas as cartas de amor são 
Ridículas. 
Não seriam cartas de amor se não fossem 
Ridículas. 

Também escrevi em meu tempo cartas de amor, 
Como as outras, 
Ridículas. 

As cartas de amor, se há amor, 
Têm de ser 
Ridículas. 

Mas, afinal, 
Só as criaturas que nunca escreveram 
Cartas de amor 
É que são 
Ridículas. 

Quem me dera no tempo em que escrevia 
Sem dar por isso 
Cartas de amor 
Ridículas. 

A verdade é que hoje 
As minhas memórias 
Dessas cartas de amor 
É que são 
Ridículas. 

(Todas as palavras esdrúxulas, 
Como os sentimentos esdrúxulos, 
São naturalmente 
Ridículas.) 

Álvaro de Campos, 
Heterônimo de Fernando Pessoa 

Há mais de meia hora - Álvaro de Campos


Há mais de meia hora 
Que estou sentado à secretária 
Com o único intuito 
De olhar para ela. 
(Estes versos estão fora do meu ritmo. 
Eu também estou fora do meu ritmo.) 
Tinteiro grande à frente. 
Canetas com aparos novos à frente. 
Mais para cá papel muito limpo. 
Ao lado esquerdo um volume da "Enciclopédia Britânica". 
Ao lado direito — 
Ah, ao lado direito 
A faca de papel com que ontem 
Não tive paciência para abrir completamente 
O livro que me interessava e não lerei. 

Quem pudesse sintonizar tudo isto! 

Álvaro de Campos,
Heterônimo de Fernando Pessoa 

Na noite terrível - Álvaro de Campos


Na noite terrível
(Álvaro de Campos,
Heterônimo de Fernando Pessoa)

Na noite terrível, substância natural de todas as noites, 
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites, 
Relembro, velando em modorra incômoda, 
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida. 
Relembro, e uma angústia 
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo. 
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver! 
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão. 
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte. 
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures, 
Na ilusão do espaço e do tempo, 
Na falsidade do decorrer. 

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei; 
O que só agora vejo que deveria ter feito, 
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido — 
Isso é que é morto para além de todos os Deuses, 
Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver ... 

Se em certa altura 
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita; 
Se em certo momento 
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim; 
Se em certa conversa 
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro — 
Se tudo isso tivesse sido assim, 
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro 
Seria insensivelmente levado a ser outro também. 

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido, 
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo; 
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse; 
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas, 
Claras, inevitáveis, naturais, 
A conversa fechada concludentemente, 
A matéria toda resolvida... 
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói. 

O que falhei deveras não tem sperança nenhuma 
Em sistema metafísico nenhum. 
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei, 
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar? 
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver. 
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos, 

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca 
Como uma verdade de que não partilho, 
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim. 

Cansaço - Álvaro de Campos


Cansaço
(Álvaro de Campos,
Heterônimo de Fernando Pessoa)

O que há em mim é sobretudo cansaço — 
Não disto nem daquilo, 
Nem sequer de tudo ou de nada: 
Cansaço assim mesmo, ele mesmo, 
Cansaço. 

A subtileza das sensações inúteis, 
As paixões violentas por coisa nenhuma, 
Os amores intensos por o suposto em alguém, 
Essas coisas todas — 
Essas e o que falta nelas eternamente —; 
Tudo isso faz um cansaço, 
Este cansaço, 
Cansaço. 

Há sem dúvida quem ame o infinito, 
Há sem dúvida quem deseje o impossível, 
Há sem dúvida quem não queira nada — 
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: 
Porque eu amo infinitamente o finito, 
Porque eu desejo impossivelmente o possível, 
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, 
Ou até se não puder ser... 

E o resultado? 
Para eles a vida vivida ou sonhada, 
Para eles o sonho sonhado ou vivido, 
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto... 
Para mim só um grande, um profundo, 
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, 
Um supremíssimo cansaço, 
Íssimno, íssimo, íssimo, 
Cansaço... 

Tabacaria - Álvaro de Campos


Tabacaria
(Álvaro de Campos,
Heterônimo de Fernando Pessoa)

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

No fim - Álvaro de Campos


No fim
(Álvaro de Campos,
Heterônimo de Fernando Pessoa)

No fim de tudo dormir. 
No fim de quê? 
No fim do que tudo parece ser..., 
Este pequeno universo provinciano entre os astros, 
Esta aldeola do espaço, 
E não só do espaço visível, mas até do espaço total. 

Não, não é cansaço - Álvaro de Campos,


Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
E um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...


Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.


Não. Cansaço por quê?
É uma sensação abstrata
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...


Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.


(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)


Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...


Álvaro de Campos,
Heterônimo de Fernando Pessoa


Fico sozinho com o Universo inteiro - Álvaro de Campos


Fico sozinho com o Universo inteiro
(Álvaro de Campos, in "Poemas" 
Heterônimo de Fernando Pessoa)

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego, 
Por toda a parte das coisas sobrepostas, 
Os andares vários da acumulação da vida... 
Calaram o piano no terceiro andar... 
Não oiço já passos no segundo andar... 
No rés-do-chão o rádio está em silêncio... 

Vai tudo dormir... 

Fico sozinho com o universo inteiro. 
Não quero ir à janela: 
Se eu olhar, que de estrelas! 
Que grandes silêncios maiores há no alto! 
Que céu anticitadino! — 
Antes, recluso, 
Num desejo de não ser recluso, 
Escuto ansiosamente os ruídos da rua... 
Um automóvel — demasiado rápido! — 
Os duplos passos em conversa falam-me... 
O som de um portão que se fecha brusco doí-me... 

Vai tudo dormir... 

Só eu velo, sonolentamente escutando, 
Esperando 
Qualquer coisa antes que durma... 
Qualquer coisa. 

Lisbon revisited (1923) - Álvaro de Campos


Lisbon revisited (1923)
(Álvaro de Campos, 
Heterônimo de Fernando Pessoa) 

NÃO: Não quero nada. 
Já disse que não quero nada. 

Não me venham com conclusões! 
A única conclusão é morrer. 

Não me tragam estéticas! 
Não me falem em moral! 

Tirem-me daqui a metafísica! 
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas 
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) — 
Das ciências, das artes, da civilização moderna! 

Que mal fiz eu aos deuses todos? 

Se têm a verdade, guardem-na! 

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. 
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. 
Com todo o direito a sê-lo, ouviram? 

Não me macem, por amor de Deus! 

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? 
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? 
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. 
Assim, como sou, tenham paciência! 
Vão para o diabo sem mim, 
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! 
Para que havemos de ir juntos? 

Não me peguem no braço! 
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho. 
Já disse que sou sozinho! 
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia! 

Ó céu azul — o mesmo da minha infância — 
Eterna verdade vazia e perfeita! 
Ó macio Tejo ancestral e mudo, 
Pequena verdade onde o céu se reflete! 
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje! 
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta. 

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo... 
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho! 

Esta velha angústia - Álvaro de Campos


Esta velha angústia
(Álvaro de Campos,
Heterônimo de Fernando Pessoa)

Esta velha angústia, 
Esta angústia que trago há séculos em mim, 
Transbordou da vasilha, 
Em lágrimas, em grandes imaginações, 
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror, 
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum. 

Transbordou. 
Mal sei como conduzir-me na vida 
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma! 
Se ao menos endoidecesse deveras! 
Mas não: é este estar entre, 
Este quase, 
Este poder ser que..., 
Isto. 

Um internado num manicômio é, ao menos, alguém, 
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio. 
Estou doido a frio, 
Estou lúcido e louco, 
Estou alheio a tudo e igual a todos: 
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura 
Porque não são sonhos. 
Estou assim... 

Pobre velha casa da minha infância perdida! 
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto! 
Que é do teu menino? Está maluco. 
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano? 
Está maluco. 
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou. 

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer! 
Por exemplo, por aquele manipanso 
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África. 
Era feiíssimo, era grotesco, 
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê. 
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer — 
Júpiter, Jeová, a Humanidade — 
Qualquer serviria, 
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo? 

Estala, coração de vidro pintado! 

Se te queres matar - Álvaro de Campos


Se te queres matar
(Álvaro de Campos,
Heterônimo de Fernando Pessoa)

Se te queres matar, por que não te queres matar? 
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida, 
Se ousasse matar-me, também me mataria... 
Ah, se ousares, ousa! 
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas 
A que chamamos o mundo? 
A cinematografia das horas representadas 
Por atores de convenções e poses determinadas, 
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím? 
De que te serve o teu mundo interior que desconheces? 
Talvez, matando-te, o conheças finalmente... 
Talvez, acabando, comeces... 
E, de qualquer forma, se te cansa seres, 
Ah, cansa-te nobremente, 
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira, 
Não saúdes como eu a morte em literatura! 

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente! 
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém... 
Sem ti correrá tudo sem ti. 
Talvez seja pior para outros existires que matares-te... 
Talvez peses mais durando, que deixando de durar... 

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado 
De que te chorem? 
Descansa: pouco te chorarão... 
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco, 
Quando não são de coisas nossas, 
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte, 
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros... 

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda 
Do mistério e da falta da tua vida falada... 
Depois o horror do caixão visível e material, 
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali. 
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas, 
Lamentando a pena de teres morrido, 
E tu mera causa ocasional daquela carpidação, 
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas... 
Muito mais morto aqui que calculas, 
Mesmo que estejas muito mais vivo além... 
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova, 
E depois o princípio da morte da tua memória. 
Há primeiro em todos um alívio 
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido... 
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente, 
E a vida de todos os dias retoma o seu dia... 

Depois, lentamente esqueceste. 
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente: 
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste. 
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada. 
Duas vezes no ano pensam em ti. 
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram, 
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti. 

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos... 
Se queres matar-te, mata-te... 
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ... 
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida? 

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera 
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor? 

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida? 
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem. 
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma? 

És importante para ti, porque é a ti que te sentes. 
És tudo para ti, porque para ti és o universo, 
E o próprio universo e os outros 
Satélites da tua subjetividade objetiva. 
És importante para ti porque só tu és importante para ti. 
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim? 

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido? 
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces, 
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial? 

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida? 
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente, 
Torna-te parte carnal da terra e das coisas! 
Dispersa-te, sistema físico-químico 
De células noturnamente conscientes 
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos, 
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências, 
Pela relva e a erva da proliferação dos seres, 
Pela névoa atômica das coisas, 
Pelas paredes turbilhonantes 
Do vácuo dinâmico do mundo...