Elogio da morte
(Antero de Quental)
I
Altas horas da noite, o Inconsciente
Sacode-me com força, e acordo em susto.
Como se o esmagassem de repente,
Assim me pára o coração robusto.
Não que de larvas me povôe a mente
Esse vácuo nocturno, mudo e augusto,
Ou forceje a razão por que afuguente
Algum remorso, com que encara a custo...
Nem fantasmas nocturnos visionários,
Nem desfilar de espectros mortuários,
Nem dentro de mim terror de Deus ou Sorte...
Nada! o fundo dum poço, húmido e morno,
Um muro de silêncio e treva em torno,
E ao longe os passos sepulcrais da Morte.
II
Na floresta dos sonhos, dia a dia,
Se interna meu dorido pensamento.
Nas regiões do vago esquecimento
Me conduz, passo a passo, a fantasia.
Atravesso, no escuro, a névoa fria
D'um mundo estranho, que povôa o vento,
E meu queixoso e incerto sentimento
Só das visões da noite se confia.
Que místicos desejos me enlouquecem?
Do Nirvana os abismos aparecem,
A meus olhos, na muda imensidade!
N'esta viagem pelo ermo espaço,
Só busco o teu encontro e o teu abraço,
Morte! irmão do Amor e da Verdade!
III
Eu não sei quem tu és — mas não procuro
(Tal é minha confiança) devassá-lo.
Basta sentir-te ao pé de mim, no escuro,
Entre as formas da noite, com quem falo.
Através do silêncio frio e obscuro
Teus passos vou seguindo, e, sem abalo,
No cairel dos abismos do Futuro
Me inclino à tua voz, para sondá-lo.
Por ti me engolfo no nocturno mundo
Das visões da região inominada,
A ver se fixo o teu olhar profundo...
Fixá-lo, compreendê-lo, basta uma hora,
Fúnera Beatriz de mão gelada...
Mas única Beatriz consoladora!
IV
Longo tempo ignorei (mas que cegueira
Me trazia este espírito nublado!)
Quem fosses tu, que andavas a meu lado,
Noite e dia, impassíel companheira...
Muitas vezes, é certo, na cansira,
No téio extremo d'um viver magoado,
Para ti levantei o olhar turvdo,
Invocando-te, amiga derradeira...
Mas não te amava então nem conhecia:
Meu pensamento inerte nada lia
Sobre essa muda fronte, austera e calma.
Luz íntima, afinal, alumiou-me...
Filha do mesmo pai, já sei teu nome,
Morte, irmã co-eterna da minha alma!
V
Que nome te darei, austera imagem,
Que avisto já n'um angulo da estrada,
Quando me desmaiava a alma prostrada
Do cansaço e do tédio da viagem?
Em teus olhos vê a turba uma voragem,
Cobre o rosto e recua apavorada...
Mas eu confio em ti, sombra velada,
E cuido perceber tua linguagem...
Mais claros vejo, a cada passo, escritos,
Filha da noite, os lemas do Ideal,
Nos teus olhos profundos sempre fitos...
Dormirei no teu seio inalterável,
Na comunhão da paz universal,
Morte libertadora e inviolável!
VI
Só quem teme o Não-ser é que se assusta
Com teu vasto silêncio mortuário,
Noite sem fim, espaço solitário,
Noite da Morte, tenebrosa e augusta...
Eu não: minh'alma humilde mas robusta
Entra crente em teu átrio funerário:
Para os mais és um vácuo cinerário,
A mim sorri-me a tua face adusta.
A mim seduz-me a paz santa e inefável
E o silêncio sem par do Inalterável,
Que envolve o eterno amor no eterno luto.
Talvez seja peccado procurar-te,
Mas não sonhar contigo e adorar-te,
Não-ser, que és o Ser único absoluto.