Tu? Eu? - Carlos Drummond de Andrade


Tu? Eu?
(Carlos Drummond de Andrade)

Não morres satisfeito. 
A vida te viveu 
sem que vivesses nela. 
E não te convenceu 
nem deu qualquer motivo 
para haver o ser vivo. 

A vida te venceu 
em luta desigual. 
Era todo o passado 
presente presidente 
na polpa do futuro 
acuando-te no beco. 
Se morres derrotado, 
não morres conformado. 

Nem morres informado 
dos termos da sentença 
de tua morte, lida 
antes de redigida. 
Deram-te um defensor 
cego surdo estrangeiro 
que ora metia medo 
ora extorquia amor. 

Nem sabes se és culpado 
de não ter culpa. Sabes 
que morres todo o tempo 
no ensaiar errado 
que vai a cada instante 
desensinando a morte 
quanto mais a soletras, 
sem que, nascido, more 
onde, vivendo, morres. 

Não morres satisfeito 
de trocar tua morte 
por outra mais (?) perfeita. 
Não aceitas teu 
como aceitaste os muitos 
fins em volta de ti. 

Testemunhaste a morte 
no privilégio de ouro 
de a sentires em vida 
através de um aquário. 
Eras tu que morrias 
nesse, naquela; e vias 
teu ser evaporado 
fugir à percepção. 
Estranho vivo, ausente 
na suposta consciência 
de imperador cativo. 

Foste morrendo só 
como sobremorrente 
no lodoso telhado 
(era prêmio, castigo?) 
de onde a vista captava 
o que era abraço e não 
durava ou se perdia 
em guerra de extermínio, 
horror de lado a lado. 

E tudo foi a caça 
veloz fugindo ao tiro 
e o tiro se perdendo 
em outra caça ou planta 
ou barro, arame, gruta. 
E a procura do tiro 
e do atirador 
(nem sequer tinha mãos), 
procura, a procura 
da razão de procura. 

Não morres satisfeito, 
morres desinformado.